::Critica a Mente::

sexta-feira, novembro 05, 2004

[0054] E a freima..

Nas noites de mãos sob a nuca, Leocádia poisava-lhe a cabeça no braço, a desatar as confidências. Adivinhava-lhe a freima e, encaixados um no outro como por medida, não descansavam toda a noite enquanto não tivessem desbastado aquela toqueira.
Jesuíno nunca estivera tão dividido. Tudo por causa da banda: queria sair e queria ficar. O sentimento mandava-o olhar para trás, a razão urgia-o a que plantasse outra árvore. Santa Engrácia foi assim até ao fim da vida, só vale a pena subir uma montanha porque depois dela está outra.
Devia tudo ao padre Francisco, desde o baptismo até àquela ideia estrambólica (bendita ideia!) de se lembrar dele para a casa do ensaio.
Por ele iria ao fim do mundo. Agora o charepe do regente novo...
«Não leves as coisas tanto a peito!»
Sempre cheio de nove horas, ou lhe davam ousio ou ele o tomava. Ultimamente o dianho do manco até se dava ao luxo de interromper o ensaio por uma nota com bolha de água. O que é isso? A verdade é que não estudava muito. Dava-se conta de que não tinha pegado no clarinete no espaço de dois ensaios.
«Aos domingos de manhã era uma alegria na casa.»
Com o instrumento resseco como um sarrafo, punha-lhe água às escondidas, que havia de fazer? O fuinha do mestre era capaz de detectar a falha duma semifusa. Ensaiava os naipes um a um, só pela desconsideração de os encostar à parede, furioso, a espumar de raiva pelos cantos da boca. Estamos aqui estamos a limpar o trecho um de cada vez.
«Gostava tanto de te ouvir! Naquele tempo, até o som era outro!»
Prometia a si próprio meia hora por dia e uma hora ao domingo de manhã. Contados ao minuto pelo relógio da sala.
«Como podes cumprir com tanto que fazer?»
E a freima. Um dia recebia uma empreitada e estava rico. No dia seguinte pagava aos fornecedores e ficava mais pobre do que antes. Preocupações. Corridas ao cronómetro para honrar uma letra com a meta à vista. (Deus nos livre deixar uma letra sem pagamento! Há muita gente que por muito menos pôs uma corda ao pescoço!) Quantas vezes chegava ao sábado a meio da tarde e ainda não tinha o preciso para pagar a féria ao pessoal. Mas era freima que o predestinava.
Leocádia acabava por adormecer ressonando-lhe de leve no braço dormente. Ei-lo mergulhado na moedeira dos últimos tempos. Gostava da banda, mas tinha outros instrumentos para tocar. Quantas vezes na vida não temos coragem de cortar as amarras que nos impedem de passar adiante! Tinha de ser. Tantas noites para uma despedida!
[ Manuel Córrego, do livro «Campo de Feno com Papoilas» ]