[0029] Toda a gente precisa de morrer uma vez
Acabava de jantar um arroz de pato que a minha avó me tinha embalado em papel-metal, sobra do almoço de domingo, e preparava-me para me enfiar na cama com um livro do Primo Levi nas mãos quando, sem avisar, apareceu o meu amigo. Vinha com uma conversa ainda mais esquisita do que o costume.
«Convencemo-nos que a pior coisa que nos pode acontecer é morrer. Errado. Isso seria a melhor coisa que nos podia acontecer. Nós não vamos morrer», disse de seguida, depois de um trago de vodka gelado que lhe pus nas mãos.
«Pois, pois, isso é uma coisa muito antiga,» retorqui com pouca vontade de metafísica. «São belíssimos os templos de Luxor. De certa maneira nós também podemos decidir não morrer. Não estou certo é do resultado final.»
E ele: «Não é nada disso. Não vês? Seria demasiado fácil, muito conveniente, mais do que natural. Fizesses isto ou aquilo, e pouco importa o quê, se bem ou mal, e chegava o dia em que tudo acabava, ficava tudo apagado, isto a que chamamos viver. Como nos enganamos. Tu não vais morrer, tu estás a morrer. É diferente. Tu não vais acabar, tu vais continuar. Não está nas tuas mãos nem o princípio nem o fim, a tua alma é imortal.»
Levantei-me da cadeira, procurei um disco compacto que não encontrei e voltei a sentar-me na mesma cadeira. Ele insistiu. «Estás a entender que eu quero dizer, ou não? Pensas: Bom, como cheguei até aqui não sei, foi um daqueles acasos, enfim, que é a maneira que tens de dizer que não tens a mínima ideia de como vieste aqui parar, mas posso sempre sair daqui, como quem sai pelas traseiras e bate a porta atrás de si. Uma enorme vantagem, sobretudo quando as coisas não estão a correr bem. Muito melhor que o melhor seguro de vida, um seguro de morte. Só que te enganas outra vez. Nós não decidimos nascer. Nem morrer.»
O meu amigo vem sempre com conversas muito interessantes às horas menos convenientes e eu disse-lhe que tinha de acordar cedo, visitar uns clientes, que nos víamos no dia seguinte para café. «Está bem. Vou já. Deixa-me acabar a vodka.»
Não tentei ler e dormi muito mal. Sonhei que estava fechado dentro do metro parado há horas numa estação qualquer e perguntava insistentemente aos meus companheiros de viagem onde estava a minha alma porque a queria salvar. Ninguém percebia o que queria dizer. Eu também não os entendia, falavam uma língua que ora parecia russo ora castelhano. Éramos estrangeiros num sítio de ninguém. Acordei de manhã muito assustado a suar e pensei: «Estamos todos à mesma distância da morte, que é nula. É a razão que temos para continuar a viver.» Levantei-me e fui lavar a cara.
[ Pedro Paixão, do livro «amor portátil» ]
1 Comments:
pq gosto de arroz de pato (adoro).. tô a brincar.
a morte mexe sempre com a gente.. mas temos de pensar q desde o primeiro segundo de nossas vidas q começamos uma louca corrida em direcção à morte.. li por aí q a vida são 2 dias: o dia q nascemos e o dia q morremos.. digo: para além disso existe 1 intervalo que depende de cada 1 de nós vive-lo da melhor forma.
By jp, at 23 outubro, 2004 16:24
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